terça-feira, 7 de dezembro de 2010

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS

Palavras-chave: Filosofia do Direito. Teoria da Justiça. Utilitarismo. Estado Democrático de Direito.

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo apresentar o pensamento jusfilosófico de John Rawls[2], exposto através de sua obra, A Theory of Justice. [3] A característica fundamental do pensamento rawlsiano é a possibilidade de se defender uma teoria da justiça que beneficie, não somente a maioria (como sustentam as concepções utilitaristas de justiça), mas a todas as pessoas indistintamente. Durante muito tempo acreditou-se que essas concepções utilitaristas seriam capazes de embasar qualquer tentativa de se gerar justiça numa sociedade plural, ou seja, numa sociedade onde há diferentes projetos de vida, todos eles concorrendo em condições de igualdade. Deste modo, sendo tal pluralismo de identidades um dos sustentáculos do modelo de Estado Democrático de Direito, paradigma adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, há que se buscar a construção de uma sociedade onde a justiça seja um bem não somente para a maioria, mas sim para cada pessoa indistintamente, conforme sustentado por John Rawls.

1 JOHN RAWLS: PENSAMENTO E CRÍTICA


John Rawls, expoente máximo das discussões contemporâneas acerca de justiça, apresentou à sociedade no ano de 1971 sua obra máxima, A Theory of Justice, por intermédio da qual expõe sua concepção de justiça, à qual o mesmo denomina justice as fairness, ou justiça como equidade, concepção essa apropriada para uma democracia constitucional, uma teoria que leva a um nível mais alto de abstração o conceito tradicional do contrato social. (RAWLS, 2002, p. 3). Nesta obra Rawls traz uma alternativa de superação das teorias utilitaristas e intuicionistas sobre a justiça, com base na tradição do liberalismo kantiano, fundando, assim, um paradigma liberal de base deontológica, tendo como privilégios os direitos civis individuais, o direito à propriedade e à integridade pessoal.
Rawls conquista seus méritos por intermédio de sua teoria ao aproximar novamente as duas principais preocupações da teoria política: o estudo do desejável e o estudo do exequível, tendo em vista terem as duas proposições se afastado no início do século vinte. Por um lado, a filosofia demarcou a questão do desejável, por outro lado, a economia e a ciência política se encarregavam de fixar a questão do exequível. Em relação a tal distanciamento, fruto da progressiva demarcação e profissionalização de disciplinas como a economia, filosofia, ciência política, Kukathas e Petit (2005) afirmam que:

Os economistas e os cientistas políticos orgulhavam-se do título de cientistas e, de acordo com os conceitos então vigentes, assumiam esse fato no sentido de não poderem envolver-se em questões sobre a desejabilidade (os fins); o seu domínio era o dos fatos, e não o dos valores. (KUKATHAS; PETIT, 2005: 15).

Ou seja, a filosofia não tinha nada a dizer em relação à exequibilidade, mas somente em relação à desejabilidade dos fins, provocando, assim, um processo de enfraquecimento, desestruturação da teoria política, tendo sido a mesma por muito tempo objeto de estudo da história do pensamento político. Comparando os meados do século vinte com épocas passadas, é extraordinário o fato de não haver personalidade ou disciplina que pudesse reivindicar a qualidade de continuadores dos grandes teóricos do passado. (KUKATHAS; PETIT, 2005: 17).
Um primeiro aspecto a ser salientado em relação aos méritos de Uma Teoria da Justiça refere-se ao fato de a mesma ter rompido com a tradição de se dar preferência à análise de ideais e princípios éticos em detrimento da exploração dos ideais e princípios a defender, ou seja, a obra marca um retorno ao estudo da desejabilidade. (KUKATHAS; PETIT, 2005: 19). Todavia, de acordo com Kukhatas e Petit:

Uma Teoria da Justiça não se limitou a fazer regressar a teoria política ao nível do estudo das questões básicas sobre a desejabilidade. Também foi altamente original, ao desprezar as fronteiras disciplinares estabelecidas e ao desenvolver uma argumentação a favor da exequibilidade das propostas específicas que avançava: mais propriamente, a exequibilidade dos dois princípios de justiça defendidos por Rawls. (KUKATHAS; PETIT, 2005: 22).

Outro pilar de interesse à discussão rawlsiana refere-se ao individualismo moral, tendo o mesmo dois sentidos amplos: um metafísico e outro moral. O individualismo metafísico afirma que os agentes individuais são os primeiros impulsionadores da vida social, não estando sua ação sujeita a quaisquer regularidades ou forças sociais, ou seja, não são “marionetas do processo histórico ou de qualquer realidade social anônima desse tipo”. (KUKATHAS; PETIT, 2005: 25). Um outro aspecto do individualismo metafísico refere-se ao fato de os atores individuais não dependerem das suas inter-relações para a consecução das suas características essenciais como agentes, o indivíduo solitário é um conceito, todavia um conceito coerente.
O individualismo moral, por sua vez, refere-se ao fato de só os atores individuais interessarem à concepção das instituições sócio-políticas, o conceito de Rawls defende que só o interesse dos indivíduos devem ser atendidos, não sendo de interesse as reivindicações feitas por grupos, culturas, ou seja, “Rawls é um exemplo notável de individualismo moral”. (KUKATHAS; PETIT, 2005: 25).
Deste modo, o pacto social é substituído por uma situação inicial que incorpora algumas restrições de conduta baseada em razões destinadas a conduzir a um acordo inicial sobre os princípios da justiça. (RAWLS, 2002: 3). Já no prefácio de Uma Teoria da Justiça, Rawls afirma que:

[...] minha intenção foi formular uma concepção da justiça que fornecesse uma alternativa razoavelmente sistemática ao utilitarismo, que, de uma forma ou de outra, dominou por um longo tempo a tradição anglo-saxã do pensamento político. A razão principal para buscar essa alternativa é, no meu modo de pensar, a fragilidade da doutrina utilitarista como fundamento das instituições da democracia constitucional. (RAWLS, 2002: XIV).

Rawls não acredita que o utilitarismo possa explicar as liberdades e direitos fundamentais dos cidadãos como pessoas livres e iguais, uma exigência fundamental para as instituições democráticas, afirmando que “muitas vezes parecemos forçados a escolher entre o utilitarismo e o intuicionismo”, (RAWLS, 2002: XXII), apesar de afirmar parecer ser o utilitarismo o conceito mais racional de justiça. (RAWLS, 1986: 54). Destarte a teoria do contrato social é a alternativa mais natural ao princípio da utilidade, sendo o objeto da doutrina do contrato o de explicar a exatidão da justiça mediante a presunção de que seus princípios surgem de um acordo entre indivíduos, indivíduos esses livres e independentes numa situação original de igualdade e que, portanto, refletem a integridade e a igualdade soberana das pessoas racionais que são partes no contrato. (RAWLS, 1986: 55).
Para ele, a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, portanto, instituições e leis, mesmo que sejam eficientes e bem organizadas, devem ser abolidas se não forem justas. Assim:

Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. (RAWLS, 2002: 44).

A verdade e a justiça são indisponíveis. Destarte, numa sociedade considerada justa, as liberdades de cidadania igual são consideradas invioláveis, são consideradas pressupostos, não estando sujeitos à negociação política ou a cálculos de interesses sociais os direitos assegurados pela justiça. A sociedade é um empreendimento cooperativo visando vantagens mútuas, sendo marcada por um conflito de identidades de interesses, todavia:

[...] a cooperação social possibilita que todos tenham uma vida melhor da que teria qualquer um dos membros se cada um dependesse de seus próprios esforços. Há um conflito de interesses porque as pessoas não são indiferentes no que se refere a como os benefícios maiores produzidos pela colaboração mútua são distribuídos, pois para perseguir seus fins cada um prefere uma participação maior a uma menor. (RAWLS, 2002: 4-5).

Assim, é necessário um conjunto de princípios para escolher entre várias formas de ordenação social que determinam essa divisão de vantagens e celebrar um acordo sobre as partes distributivas adequadas, tais princípios são os princípios da justiça social. A justiça social é o interesse da teoria rawlsiana, ou seja, o modo pelo qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a distribuição de vantagens provenientes da cooperação social. A estrutura básica da sociedade contém várias posições sociais, tendo assim, homens nascidos em condições diferentes expectativas diferentes, levando-se em consideração aspectos sociais, econômicos, políticos, compreendendo a constituição política e as instituições econômicas e sociais mais importantes, as quais reunidas definem as liberdades e direitos de uma pessoa, afetando, assim, as expectativas de sua vida. É às “desigualdades, supostamente inevitáveis na estrutura básica de qualquer sociedade, que os princípios da justiça social devem ser aplicados em primeiro lugar”. (RAWLS, 2002: 8).
Devendo se questionar como as instituições básicas de uma democracia constitucional devem se estruturar para garantir o equilíbrio entre as duas posições adotadas dentro do pensamento democrático, uma associada a John Locke, que dá maior peso às chamadas “liberdades dos modernos” de Benjamin Constant, prestigiando a liberdade de pensamento e de consciência, certos direitos básicos da pessoa e de propriedade, e outra tradição, esta associada a Rousseau, prestigiando as “liberdades dos antigos”, ou seja, garantindo liberdades políticas iguais e os valores da vida pública. (RAWLS, 2000: 46-47). Para responder à questão, Rawls apresenta, então, os dois princípios da justiça, os quais trazem que:

a.  Todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto esse compatível com todos os demais; e, nesse projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor equitativo garantido.
b.  As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: primeiro, devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, segundo, devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade. (RAWLS, 2000: 47-48).

Os dois princípios se dirigem fundamentalmente a afrontar as desigualdades da natureza da estrutura básica, as quais são inevitáveis em toda e qualquer sociedade. Partindo do ponto da abstração do contrato social, o que Rawls denomina de posição original, é nele que serão acordados os dois princípios da justiça que regerão a estrutura básica da sociedade, sendo tais princípios escolhidos sob um véu de ignorância, estando também as partes nessa situação inicial racional e mutuamente desinteressadas, não conhecendo, de antemão, seus objetivos pessoais, sua condição sócio-econômica e as doutrinas abrangentes específicas das pessoas representadas, (RAWLS, 2003), precedendo o conceito de justo ao de bem, sendo a prioridade do justo em relação ao bem a característica central da concepção de justiça como equidade. (RAWLS, 2002). Assim:

Na justiça como equidade a posição original de igualdade corresponde ao estado de natureza na teoria tradicional do contrato social. Essa posição original não é, obviamente, concebida como uma situação histórica real, muito menos como uma condição primitiva da cultura. É entendida como uma situação puramente hipotética caracterizada de modo a conduzir a uma certa concepção da justiça. (RAWLS, 2002: 13).

Neste ponto há a elucubração de Rawls acerca da possibilidade de as partes deliberarem princípios utilitaristas, o que não é aceito pelo mesmo, tendo em vista estarem numa posição de igualdade, podendo fazer exigências mútuas. Assim, seria pouco provável que alguém aceitasse ter seus direitos reduzidos, expectativas de vida inferiores, para que pudessem gerar mais vantagens a serem desfrutadas por outros. Ou seja, cada indivíduo buscando o melhor para si, não aceitaria que houvesse perda de suas vantagens em benefícios maiores dos outros, o que não é racional na posição original. Ao contrário, Rawls sustenta que na posição original as pessoas sustentam dois princípios:

[...] o primeiro exige a igualdade na atribuição de deveres e direitos básicos, enquanto o segundo afirma que desigualdades econômicas e sociais, por exemplo desigualdades de riqueza e autoridade, são justas apenas se resultam em benefícios compensatórios para cada um, e particularmente para os membros menos favorecidos da sociedade. (RAWLS, 2002: 16).

Para Rawls, uma sociedade humana pode ser pensada como uma associação mais ou menos auto-suficiente, regulada por um conceito comum de justiça e que tem por objetivo procurar o bem para seus membros. Assim, em sociedade há a possibilidade de existir para cada um uma vida melhor do que existiria se estivesse sozinho, mas há que se considerar não ser comum o modo de se distribuir os benefícios mais amplos que derivam do trabalho conjunto de seus membros, pois cada um tem o interesse numa parte maior do bem em detrimento à parte menor. (RAWLS, 1986: 54), chegando-se naturalmente ao princípio da utilidade, sendo ordenada uma instituição que realize a maior soma de satisfações, o que resulta problemático, pois indivíduos racionais não abririam mão da violação de sua liberdade para a aquisição de maiores benefícios de outros.
Sendo marcada por uma diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais conflitantes e irreconciliáveis, algumas consideradas razoáveis, o liberalismo rawlsiano o vê como resultado inevitável, ao longo prazo, do exercício das faculdades da razão humana em instituições básicas livres e duradouras. Destarte, quais são os fundamentos desta tolerância? (RAWLS, 2000: 45). Assim, Rawls analisa a possibilidade de existir, num mundo tão marcado por diversidades, concepções diversas de religião, visões filosóficas de mundo e visões diversas do bem, uma sociedade justa e estável de cidadãos livres.
Rawls salienta que um modelo de mercado está abandonado, haja vista que o que é fundamental para a democracia[4] é um procedimento que assegure a todos os indivíduos plena voz em um sistema equânime de representação. Tal sistema é fundamental porque a proteção adequada de outros direitos fundamentais depende dele. A igualdade formal não é suficiente. (RAWLS, 2000).
Deste modo, o liberalismo político pretende apresentar uma concepção política e liberal de justiça, a fim de buscar resolver o que seria o grande tema da filosofia política atual: o de como ordenar a sociedade de modo a que seja justa, estável e democrática, dado o fato do pluralismo razoável de visões de mundo e modos de vida, tendo uma concepção liberal de justiça, para Rawls, como conteúdo o fato de “especificar certos direitos, liberdades e oportunidades fundamentais, tendo tais direitos, liberdades e oportunidades prioridade especial diante de pretensões do bem geral, e estabelecendo meios que assegurem a todos os cidadãos as condições adequadas para o uso desses direitos, liberdade e igualdades. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000: 72).
Do outro, para o republicanismo a democracia só é possível em uma comunidade culturalmente homogênea, na qual através de uma formação moral cívica robusta pudessem os indivíduos realizar os valores consagrados e refletidos na Constituição. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000: 72).
Dentre as características das instituições, Rawls salienta a liberdade de consciência igual, sendo a democracia constitucional o modelo de Estado no qual a teoria da justiça como equidade se aplica perfeitamente. Dentre outros postulados das instituições, Rawls se referindo ao Estado de Direito, salienta a necessidade de legisladores e juízes, e outras autoridades do sistema acreditarem que as leis possam ser obedecidas e que todas as ordens podem ser executadas. Pois leis e ordens são aceitas como leis e ordens apenas se em geral se acredita que elas podem ser obedecidas e executadas. (RAWLS, 2002). Em relação ao segundo princípio, Rawls afirma que:

[...] a desigualdade está permitida somente se si justifica pensar que a instituição que contiver a desigualdade – ou a permitir – traduzi-la em benefício de todos os que estão comprometidos com a mesma. No caso da estrutura básica, isto significa que todas as desigualdades que afetam as perspectivas de vida, digamos as desigualdades de ingresso e riqueza que existem entre classes sociais, devem redundar em benefício de todos. (RALWS, 1986: 57, tradução nossa).[5]

Devendo eventuais desigualdades beneficiar, como já afirmado, as expectativas de vida de cada uma das pessoas envolvidas.
Dentre os críticos da teoria rawlsiana, está o nome de Robert Nozick,[6] pensador liberal clássico (libertário), o qual defende, destarte, um Estado mínimo,[7] Estado este limitado à proteção de todos os cidadãos contra a violência, o furto, o roubo e a fraude, dentre outros.
Dentre os libertários que defendem o Estado mínimo situam-se os grupos dos pragmáticos e os que se baseiam em princípios. Os libertários pragmáticos defendem o Estado mínimo não por entender ser os direitos por eles defendidos revestidos de caráter sagrado, mas sim por entender se sua proteção de interesse para a promoção da utilidade máxima do mercado.[8] Dentre as críticas dirigidas a Rawls pelos libertários pragmáticos está a de ser sua teoria inexequível, ineficaz.
Já os libertários que se baseiam em princípios defendem o Estado mínimo como garantidor de direitos naturais ou fundamentais, ou seja, os bens protegidos por esse Estado mínimo são revestidos de importância fundamental e natural.
Nestes termos, o pensamento de Robert Nozick se situa naquilo que pode-se chamar de libertarianismo principiológico, enxergando, Nozick, o Estado rawlsiano como um Estado malévolo, o qual interferirá nos direitos de propriedade, permitindo infrações redistributivas.
Robert Nozick dirige suas críticas à teoria de Rawls através de sua obra Anarchy, State and Utopia de 1974,[9] na qual elabora uma concepção de justiça diametralmente oposta à de Rawls, expondo já no início da mesma que:

Indivíduos têm direitos. E há coisas que nenhuma pessoa ou grupo podem fazer com os indivíduos (sem lhes violar os direitos). Tão fortes e de tão alto alcance são esses direitos que colocam a questão do que o Estado e seus servidores podem, se é que podem fazer. Que espaço os direitos individuais deixam ao Estado? (NOZICK, 1991: 9).

Tais direitos são os direitos de liberdade pessoal e de propriedade privada, os quais, de acordo com Nozick devem ser, não somente, respeitados mas também devem ter o estatuto de restrições fundamentais, mais ou menos, absolutas. (KUKATHAS; PETIT, 2005: 95). Por conseguinte, tais direitos não podem ser infringidos em nome de nenhum tipo de maximização de qualquer objetivo social que seja. Ademais, ninguém possui direito a quaisquer bens materiais além daqueles que adquiriu como propriedade privada (FLEISCHACKER, 2006: 174).
Kukathas e Petit (2005) salientam o fato de um libertário que assuma uma concepção como a de Nozick enfrenta um problema ao ser indagado sobre qual seja o melhor sistema sócio-político. Pois, qualquer Estado, mesmo o Estado mínimo, irá ferir os direitos de liberdade ou propriedade das pessoas, seja ao lançar impostos, seja ao usar da coerção para coibir certas formas de agressão.[10]
Criticando a teoria de Rawls, Nozick identifica duas objeções à teoria: a objeção básica e a objeção prática. A objeção básica consiste no fato de que, enquanto a teoria libertária afirma serem as coisas sempre pertencentes a alguém, a teoria de Rawls trata os bens distribuídos como maná dos céus, bens a que ninguém do ponto de vista da posição original têm direito, como tendo vindo do nada e de parte nenhuma. (KUKATHAS; PETIT, 2005).
Tal crítica é dirigida de modo austero a Rawls por Nozick quando este afirma que se os bens caíssem do céu como o maná, e não tivessem as pessoas nenhum direito a qualquer parte delas, e que nenhum maná caísse do céu a não ser que todos estivessem de acordo com uma determinada distribuição, então seria plausível afirmar que as pessoas não pudessem reclamar deste tipo de distribuição. Qualquer plano distributivo será perturbado por doações e trocas livres. Todavia, isso não ocorre, como pensar que se obtêm os mesmos resultados tanto em situações em que existem diferentes direitos como em situações em que eles não existem? (NOZICK, 1991). Todavia, Rawls não está afirmando poderem ser as pessoas privadas de seus pertences, o que Rawls justifica é a distribuição dos bens ainda por adquirir ou produzir.
A outra objeção, a objeção prática, refere-se ao entendimento de Nozick de que a teoria como postulada por Rawls provocará a interferência estatal na vida das pessoas, pois nenhum ideal postulado como Rawls postulou, pode ser efetivado sem que haja interferência contínua na vida das pessoas. Pois, caso as pessoas ajam de modo diverso do estatuído na estrutura ideal, poderá fazer com que tal padrão seja alterado. Ou seja, para que o padrão seja mantido é necessária a interferência contínua com vista à fiel consecução desse padrão.
Todavia, o Estado defendido por Rawls não interferiria continuamente na vida das pessoas, o que acontecerá serão incursões fiscais previsíveis, de acordo com o império da lei. Deste modo, percebe-se claramente uma réplica de Rawls a essa objeção de Nozick, ao afirmar que:

Os impostos e as restrições são, em princípio, previsíveis e os bens são adquiridos sabendo-se que serão feitas certas correções. A objeção de que o princípio da diferença impõe uma interferência contínua e caprichosa nas transações privadas baseia-se num mal-entendido. (RAWLS apud KUKATHAS; PETIT, 2005: 108).

Logo, percebe-se a inconsistência das objeções apresentadas por Nozick a Rawls, argumentos os quais podemos afirmar como sendo de qualidade variável, todavia, tendo alguns fortes, como alguns dos elencados anteriormente. Nozick não fornece uma argumentação positiva a favor de sua noção de justiça, que atribui direitos a determinadas coisas com base naquilo que originalmente se adquire ou que se recebe por meio de troca legítima, doação.
Ademais, Nozick é acusado por alguns estudiosos de não ter fornecido uma argumentação razoavelmente boa para convencer alguma pessoa da posição libertária, a menos que tal pessoa já estivesse convencida por ela antes de ler sua obra. Mesmo não tendo oferecido boas razões para justificar a importância fundamental dos direitos de propriedade para a justiça e a liberdade, Nozick ainda não foi superado por nenhum outro autor libertário, ademais, é de se concordar com Bobbio quando este afirma que “a teoria de Nozick põe mais problemas do que é capaz de resolver.” (BOBBIO, 2000: 91).


CONCLUSÃO


A Filosofia do Direito ao longo do pensamento tem tentado apresentar teorias que expliquem e fundamentem o fenômeno da justiça. Muitas são consideradas autoritárias, outras democráticas. Durante muito tempo se pensou que não se conseguiria superar as concepções utilitaristas de justiça até então existentes na história do pensamento jurídico.
Neste ínterim, já no ano de 1971, John Rawls apresenta ao mundo sua teoria, a qual se apresentou como uma ruptura com tudo aquilo que havia sido teorizado sobre a justiça. A partir de então a justiça não será mais encarada como um bem que beneficia a maioria, mas sim a todos indistintamente, ou seja, aplicar justiça é oferecer inclusão aos excluídos, àqueles grupos que permaneceram durante grande parte da história às margens da sociedade.
Assim, somente com medidas afirmativas de inclusão se construirá uma sociedade menos díspar, superando, deste modo, as desigualdades que durante muito tem assolam nossa sociedade, produzindo sofrimento e marginalização.


REFERÊNCIAS



BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 2000.

BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. 29. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.

DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Brasília: UNB, 2001.

DURANT, Will. A história da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

FASSÒ, Guido. Historia de la filosofia del derecho: v.1: Antigüedad e Edad Media. Madrid: Pirámide, 1966.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

FREEMAN, Samuel et al. The cambridge companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University, 2003.

HABERMAS, Jürgen. Factidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Trotta, 1998.

HÖFFE, Otfried. O que é justiça. Porto Alegre: Edipucrs, 2003.

GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? São Paulo: Martins Fontes, 2003.
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004.

KUKATHAS, Chandran; PETIT, Philip. Rawls: uma teoria da justiça e os seus críticos. 2. ed. Lisboa: Gradiva, 2005.

LIJPHART, Arend. As democracias contemporâneas. Lisboa: Gradiva, 1989.

MILL, John Stuart. Utilitarismo. São Paulo: Escala, 2007.

NOZICK, Robert. Anarchy, state, and utopia. Oxford: Blackwell, 1999.

NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

OLIVEIRA, Nythamar de. Rawls. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

RAWLS, John. Justiça e democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

RAWLS, John. Justicia distributiva. Estudios públicos, Santiago, n. 24, p. 53-90, 1986.

RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

WALZER, Michael. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2003.




[1] Doutorando e Mestre em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Gama Filho; Professor no Curso de Direito da Faculdade Asa; Advogado.
[2] “Não surgiu nenhuma obra dominante de teoria política no século XX.”, escrevia Isaiah Berlin em 1962 [...] A diferença notória é que agora, em 1978, a asserção de Berlin deixou de ser verdadeira. Deixou de sê-lo em 1971, quando A Theory of Justice, de John Rawls, de Harvard, foi publicada em Cambridge, Massachusetts. (FISHKIN; LASLET apud KUKATHAS; PETIT, 2005: 13).
[3] No ano de 1971, John Rawls escreve sua obra A Theory of Justice, traduzida para o português como Uma teoria da justiça, a obra, em pouco tempo, causa furor e reacende os estudos sobre a justiça na sociedade ocidental. Este impacto é apresentado pelo filósofo Robert Nozick, em sua obra Anarchy, state, and utopia: “Os filósofos políticos precisam a partir de agora trabalhar no âmbito da teoria de Rawls ou explicar por que não o fazem.” (Nozick, 1974: 183, tradução nossa). Já no início da obra, ainda em seu prefácio, Rawls apresenta o objetivo de seu modelo de justiça: atacar os aspectos utilitarista e intuicionista existentes nos vigentes conceitos de justiça de até então.
[4] Para uma abordagem conceitual detalhada acerca da democracia, ver DAHL, (2001); GOYARD-FABRE, (2003) e LIJPHART (1989).
[5] [...] la desigualdad está permitida solamente si se justifica pensar que la institución que contiene la desigualdad – o la permite – va a traducirla en beneficio de todos los que están comprometidos en ella. En el caso de la estructura básica, esto significa que todas las desigualdades que afectan las perspectivas de vida, digamos las desigualdades de ingreso y riqueza que existen entre clases sociales, deben redundar en beneficio de todos.
[6] Nascido no bairro novaiorquino do Brooklin em 1938, no seio de uma família de judeus russos emigrados, Robert Nozick, conforme gostava ele mesmo de relatar, chegou à filosofia por meio de cândidas perguntas sobre a existência de Deus ou a expansão do universo (Nozick, 1997: 235 e sg.). De algum modo ele conseguiu processar essas questões na problemática da justificação dos princípios em geral e dos princípios morais em particular, um tema que, de forma explícita ou implícita seguiu presente em cada uma de suas obras publicadas. Logo depois de estudar em uma escola pública Nozick ingressou na Universidade de Columbia, onde se destacou como um ativo militante de um pequeno partido político filo-socialista. De Columbia passou a Princeton, onde, orientado por Carl Hempel, obteve um mestrado e um doutorado com dissertações sobre o que anos mais tarde se converteria no non plus ultra da filosofia analítica e das ciências sociais: a teoria da escolha racional. Também foi em Princeton onde Nozick tomou contato com as idéias neoliberais em geral e as libertarianas em particular, absorvendo-as pouco a pouco, até o ponto de abandonar por completo sua relação com a esquerda. (MORRESI, 2002: 285).
[7] Há alguns libertários que rejeitam qualquer concepção estatal.
[8] É de citar o nome de F. A. Hayek.
[9] Publicado no Brasil como Anarquia, Estado e Utopia.
[10] Todavia, um dos problemas que Nozick analisa com originalidade se refere ao fato de que mesmo em uma sociedade anárquica haverá a passagem para o Estado, mesmo que mínimo, sob duas condições: pois as pessoas atuariam em seu próprio interesse e respeitaria os direitos dos outros.